Carlos
Trincão
Tomar é onde
a calma das manhãs tem coisas que a pressa dos dias não permite descortinar. É
por isso que só às vezes, quando os olhos, o acaso e a Alma se encontram num
mesmo instante, vemos o que está sempre à nossa frente...
A minha cidade é uma viagem no tempo que pode
começar logo de manhã, quando acordo e olho a silhueta do Castelo. Ali se
guardam os antigos segredos templários; e, no Convento e em cada claustro,
novas razões para uma atenção redobrada às preciosidades reconhecidas como
Património Mundial, onde espreita a Janela
do Capítulo, janela do mundo aberta para a cidade e para o mistério. Ou janela
da Cidade a abrir caminhos ao Mundo?
Cidade-Jardim, assim também se chama, a dar a
certeza de que aqui sempre a Natureza e o Homem viveram em harmonia. Dir-se-ia
que as pedras monumentais, a água e as plantas conjugaram esforços para aqui
fazer um lugar de sonho que também se descobre nos pormenores, nas janelas e
portais, na serena presença dos antepassados, nas mãos do Povo que enchem as
ruas de cor e perfume.
A cidade descobre-se logo pela manhã, ao lado
do Nabão a imaginar-lhe o cheiro depois de atravessar a cidade de uma ponta à
outra debaixo de um sol danado de bom que vem em força entrando de supetão
pelas pessoas dentro.
O rio é um poema serpenteante quando atravessa
a cidade. E é também Paz, Tranquilidade, Trabalho e Lazer. No centro, envolve a
ilha do Mouchão num abraço ritmado pelo chiar melodioso da Roda árabe.
As minhas histórias do (e no) Nabão são quase
mais as da vontade de as ter tido do que outra coisa. Algumas houve a bordo –
ou fora de borda – daqueles botezecos de remos e aluguer. Houve outras à borda.
Mas as que mais se recordam são as estórias virtuais que uma vida sempre sempre
ao lado do rio foi criando: um gosto desmesurado pelo Rio, um desejo muito
grande de ser parte disto tudo, uma inveja enorme das aventuras no Rio de
outros mais velhos que por aqui folgaram na sua juventude.
Chamem-se-lhe socalcos no rio e a imagem é bem
conseguida. Antigamente o Nabão podia muito bem ser uma sucessão de espelhos de
água que cada açude de estacaria represava. Desciam o rio, alimentando as
terras e as indústrias; chegavam a Tomar e continuavam a alimentar terras e
indústrias; e prosseguiam depois, voltando a alimentar terras e indústrias.
Com os açudes casavam as rodas de rega,
autênticas pontes ligando as águas às terras. Conta “Nini” Ferreira que “a água
encaminhava-se para os canais das rodas em forte corrente. Corria e batia nas
penas das rodas. Empurrava-as. A frente das penas, atados nas cintas exteriores
iam os alcatruzes que mergulhavam, enchiam, subiam, despejavam nos “tabuleiros”
e lá seguia a água para o “calheiro real” e, daí, por canos ou aquedutos. E,
assim, chegava a água a hortas e pomares.” Ao som de bucólicas chiadeiras e
rangidos das madeiras.
As terras eram – e são – férteis à beira-rio.
Nem podiam queixar-se da água com que as rodas as refrescavam. E assim era.
Roda após roda. Chiadeira atrás de chiadeira.
Açude após açude. Rápido após rápido. Mouchão
após mouchão, ilhas de verdes e frescuras entre o rio e o canal. Como o Mouchão
do centro da cidade, este agora em versão de substantivo próprio. Atravessa-se
o pontão e esquece-se a urbe. Entra-se numa autêntica catedral de recolhimento
a que não faltam sequer imensas colunas a suportar românticos arcos góticos de
plátanos, ao mesmo tempo tecto e vitral por onde a luz se entremeia com a
folhagem.
Águas de Tomar não são só as do Rio. Também o
Mar nos percorre as veias desde tempos imemoriais: desde os tempos em que os
Papas eram Bispos de Tomar, desde os tempos em que a igreja de Santa Maria do
Olival, não apenas panteão templário, foi matriz da grande diocese que foram as
terras descobertas e cujo governo espiritual era responsabilidade dos
Sucessores de Pedro. Ou ainda desde aqueles tempos em que Gama, o Almirante das
Índias, aqui recebeu a dignidade de Cavaleiro de Cristo directamente das mãos
do próprio Rei D. Manuel.
Há até quem diga que o Tesouro dos Templários
ainda aqui está escondido; outros, que o que aqui esteve foi apenas um nono
desse tesouro; um nono que um cavaleiro português ao serviço do Rei Dinis
recebera de Jacques de Molay, em Paris, na véspera da prisão do Mestre dos
Mestres; um nono do Tesouro Templário que mais não era do que os mapas
marítimos que Henrique, o Navegador e Pai dos Descobrimentos, utilizou para
reencontrar o Mundo.
Mas isso são sonhos! Apesar de ser um lindo
sonho pensar que a parte do Tesouro que nos coube foi o Conhecimento, não é?
Aliás, beleza é o que aqui não falta: quando as mãos do Povo acariciam as
matérias rudes, o resultado é sempre uma preciosidade, seja para o paladar ou
para os olhos, de tal modo que a Arte de florir as ruas prossegue dentro de
casa, florindo os lares com as flores da Natureza.
As mesmas flores cujas pétalas celebram Santa
Iria, em Outubro: da Ponte Velha, flutuando na água, pintam-se o Nabão e a
Memória com pontinhos de cor.
Flores que se repetem na Festa dos Tabuleiros,
a Alma dos tomarenses, com o cheiro das flores, do pão e das espigas de trigo
nos tabuleiros que vão à cabeça das raparigas vestidas de branco. Uma festa em
que todas as artes e devoções se unem num imenso louvor e em que os tomarenses
se unem num único e imenso abraço.
É isto que se faz pela manhã: beber a magia
desta cidade, uma magia que não se entende porque apenas se sente. Magia feita
de Ruas, de Mouchão, de Castelo, de Festa.
De bocados de cidade que já não existem mas
ainda se recordam. Afinal, tudo é mais de sentir do que de ver.
E à noite, quando as sombras sussurram
mistérios, há sempre uma luz que nos indica caminhos.
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